sábado, 3 de setembro de 2016

“Já fiz. Podes vir”




Não havia esgotos nem wcs: era no lado detrás do chaparro, do muro ou de uma simples oliveira que o alívio espreitava entre sorrisos “Já fiz. Podes vir”. Não havia jornais e a erva nem sempre crescia ali- sejamos honestos. Os índios, os cowboys, a macaca, o caracol, o pião, a corda, a bruxa ou o Tarzan eram pertença dos pequenos saltimbancos da rua. Em ruas não alcatroadas, descalços e coloridos de medalhas ( renovadas à segunda-feira, após o mergulho de domingo nas cálidas águas aquecidas, à lareira, e depositadas num velho alguidar) éramos cuidadosamente zelados pela aldeia:
- Sai daí. Olha que apanhas.


Ali, nas ruas, onde nem sequer havia calçada, aprendemos: a baixar os olhos num ato de reconhecimento de culpa; a perder os dentes em defesa de uma amigo ou a descer a ladeira sem travões; a abraçar; a chorar; a rir; a cair; a levantar… Fomos, talvez, os últimos saltimbancos a crescer no luxo que é a ausência até da pedra calcetada. Num mundo que se alterou tão drasticamente, não sei onde nos perdemos mas cada vez mais é notório o esconder e o abrilhantar (de forma errónea) as origens: o  embrulhar o “Eu” adornando-o com meia dúzia de laços luzidios de origem duvidosa. Num mundo de selfies, facebook, instangram… partilhamos e sobrevalorizamos um “Eu” egoísta mascarado de perfeição, sucesso ou vitória. E não somos, não somos nada do que partilhamos: todos “cag amos” e “cag ámos” atrás do muro. Nem eu sou só sorrisos, loucura e fadas nem vós só sucesso e perfeição. Somos dor; somos bem-estar; somos sorrisos; somos choro; somos dúvida; somos certeza; somos amor; somos ódio; somos lembrados; somos esquecidos; somos alegria; somos tristeza; somos sucesso; somos fracasso; somos bons; somos maus; somos humanos. Em cada um de nós existe um pouco de tudo. O que nos define é o que usamos maioritariamente na interação com o próximo, com o amigo e até com o inimigo. O que nos define é o que usamos em momentos não programados.
A queda da justiça, a incapacidade do sistema de saúde, uma escola entrouxada de exigência (onde o saber se apresenta sempre como insuficiente), empregos a tempo inteiro encaixotaram-nos em solidão. E na lacuna do contato  com o próximo, o facebook, o instangram e outras aplicações surgem à distância de um clique, no facilitismo da poltrona da sala ou da mesa do café. Num mundo sem cheiro nem som ou tato é fácil esconder as rugas. É fácil ser rei ou rainha; é fácil ser bom ou ter sucesso mas também é fácil magoar; denegrir ou humilhar. Se por um lado estas aplicações preenchem lacunas, por outro encurralam-nos no “não preciso ser; basta mostrar”.
Eu tenho saudades de um bom empurrão; do calor de um bom abraço. Tenho saudades do limpar, com a mão, a lágrima de um amigo; de sentir a tua mão que enxuga a minha. Tenho saudades da tua mão no meu cabelo; saudades da minha no teu. Eu tenho saudades do cheiro, do som, do toque da tua pele e do “Já fiz, podes vir”.
Eu tenho saudades. E vocês?
Sorrisos

Guida Brito

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