Resposta ao bilhetinho
encontrado na minha rica (por gostar muito dela) carrinha.
Caro, Vizinho (suponho que o seja: caracteres com
traços masculinos e o assunto sugere que partilhamos a mesma calçada).
Quase que tem razão, quase.
Já pensou que eu podia estar mal disposta,
cansada, doente, alcoolizada, drogada; o meu dia podia ter sido uma m...;
posso ter falta de visão; ser uma naba nas lides do estacione onde eu
quero; posso não ter sequer carta de condução; alguém me pode ter feito mal;
posso não gostar de fileiras; posso ser difícil de me colocar entre linhas; ou
posso simplesmente não ter tomado café. Um dado pode ser “dado” como adquirido
(como certo) e dessa certeza não escapo: eu estava a sorrir quando, de forma
naba e incompetente, atravessei a grandura da minha companheira de estrada e
não respeitei as fileiras brancas que indicam, como se fossemos todos burros
(seres não pensantes- o animal não tem culpa) e todos portadores de pouca ética
e inválidos no que respeita ao viver em sociedade, onde nos devemos colocar.
Embora pequena e pobre criatura, tenho o péssimo hábito de andar sempre a
sorrir. Sou de bem com a vida.
Por incrível que lhe pareça, estacionei a minha
companheira de aventuras de forma a possibilitar o estacionamento de outros
moradores e não com o intento contrário. Às vezes preocupo-me com os outros,
desculpe. Não sei se reparou, ao lado do meu veículo estava um lugar de
estacionamento para pessoas portadoras de deficiência ( aqueles seres
diferentes cuja mobilidade e falta de acessos os obriga a viver confinados ao
espaço casa- por isso nem todos os conhecem ou têm consciência da sua
existência). Esse espaço, além de não apresentar dimensões que permitam a
utilização pela maioria dessa gentalha – que se pensa com direito a sair da
home (não quero repetir a palavra casa) ou visitar amigos- ainda é estreitado
pela existência de um balde do lixo fixo e de alguns carros (espero que um seja
o seu; quem quer humanos desses na sua calçada?) que, normalmente, ocupam o passeio
e vedam a utilização desse lugar para gente com um umbigo tão grande, mas tão
grande, que até queria um lugar de estacionamento só para si- quem sabe para
ver o sol, sentir o vento ou entrar na home uma vez por ano). Pensei que não
eram seres do imaginário e, também eles, tinham o direito de sorrir de lés a
lés. Desculpe! Não tornarei a pensar em ninguém que não seja eu. Até porque as
dezenas de lugares vazios a 10 metros de distância e o facto de todos termos
garagem (graças a deus sem acesso a essa gentinha) não impede que queiramos
também o lugar frente à nossa porta, é nosso. Prometo emagrecer (já estou de
dieta), encolher mais um pouco (1,50m é muita grandeza) e enfileirar-me entre
linhas: estacionarei direito.
Desculpe lá...não considera um ato de terrorismo
dirigir-se a alguém de forma anónima? Pretende que viva com medo? Não teria
sido conveniente e esclarecedor referir a sua hierarquia nas gafes desta
calçada? Não acha que teria sido mais feliz se no tempo que me dedicou, de
forma rude, tivesse abraçado alguém? E se ao invés do que me enviou me tivesse
cumprimentado e dissesse ao que ia? E se me tivesse deixado um bilhetinho
simpático.... sei lá:
“Flor!
Já viu como estacionou?
Assinado
João, Duarte, Felismino ou outro: a sua
graça."
Eu responder-lhe-ia:
"Bom dia, Cravinho.
Já viu o que está ao lado?"
E assinava, como assino estas letrinhas. E
sorriamos: ficávamos com uma história para contar aos amigos - que, por sua
vez, também sorririam. Não fico com medo. É meu intento fazê-lo sorrir, afinal
a vida é tão curta para darmos vital importância a duas marcas de tinta
desenhadas na estrada.
Tenha um bom dia e sorria ao ler as minhas
letrinhas. Este é um bairro de gente boa e a diversidade colorida dos seus
habitantes deve ser motivo de orgulho. Há espaço para nós todos.
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Guida Brito