terça-feira, 7 de julho de 2015

Cartinha a um vizinho

       Resposta ao bilhetinho encontrado na minha rica (por gostar muito dela) carrinha.
   Caro, Vizinho (suponho que o seja: caracteres com traços masculinos e o assunto sugere que partilhamos a mesma calçada).
Quase que tem razão, quase.



    
Já pensou que eu podia estar mal disposta, cansada, doente, alcoolizada, drogada; o meu dia podia ter sido uma m...; posso ter falta de visão; ser uma naba nas lides do estacione onde eu quero; posso não ter sequer carta de condução; alguém me pode ter feito mal; posso não gostar de fileiras; posso ser difícil de me colocar entre linhas; ou posso simplesmente não ter tomado café. Um dado pode ser “dado” como adquirido (como certo) e dessa certeza não escapo: eu estava a sorrir quando, de forma naba e incompetente, atravessei a grandura da minha companheira de estrada e não respeitei as fileiras brancas que indicam, como se fossemos todos burros (seres não pensantes- o animal não tem culpa) e todos portadores de pouca ética e inválidos no que respeita ao viver em sociedade, onde nos devemos colocar. Embora pequena e pobre criatura, tenho o péssimo hábito de andar sempre a sorrir. Sou de bem com a vida.


    Por incrível que lhe pareça, estacionei a minha companheira de aventuras de forma a possibilitar o estacionamento de outros moradores e não com o intento contrário. Às vezes preocupo-me com os outros, desculpe. Não sei se reparou, ao lado do meu veículo estava um lugar de estacionamento para pessoas portadoras de deficiência ( aqueles seres diferentes cuja mobilidade e falta de acessos os obriga a viver confinados ao espaço casa- por isso nem todos os conhecem ou têm consciência da sua existência). Esse espaço, além de não apresentar dimensões que permitam a utilização pela maioria dessa gentalha – que se pensa com direito a sair da home (não quero repetir a palavra casa) ou visitar amigos- ainda é estreitado pela existência de um balde do lixo fixo e de alguns carros (espero que um seja o seu; quem quer humanos desses na sua calçada?) que, normalmente, ocupam o passeio e vedam a utilização desse lugar para gente com um umbigo tão grande, mas tão grande, que até queria um lugar de estacionamento só para si- quem sabe para ver o sol, sentir o vento ou entrar na home uma vez por ano). Pensei que não eram seres do imaginário e, também eles, tinham o direito de sorrir de lés a lés. Desculpe! Não tornarei a pensar em ninguém que não seja eu. Até porque as dezenas de lugares vazios a 10 metros de distância e o facto de todos termos garagem (graças a deus sem acesso a essa gentinha) não impede que queiramos também o lugar frente à nossa porta, é nosso. Prometo emagrecer (já estou de dieta), encolher mais um pouco (1,50m é muita grandeza) e enfileirar-me entre linhas: estacionarei direito.



    
Desculpe lá...não considera um ato de terrorismo dirigir-se a alguém de forma anónima? Pretende que viva com medo? Não teria sido conveniente e esclarecedor referir a sua hierarquia nas gafes desta calçada? Não acha que teria sido mais feliz se no tempo que me dedicou, de forma rude, tivesse abraçado alguém? E se ao invés do que me enviou me tivesse cumprimentado e dissesse ao que ia? E se me tivesse deixado um bilhetinho simpático.... sei lá:



                       “Flor!

    Já viu como estacionou?

                    Assinado

           João, Duarte, Felismino ou outro: a sua graça."



Eu responder-lhe-ia:



                      "Bom dia, Cravinho.

    Já viu o que está ao lado?"

   E assinava, como assino estas letrinhas. E sorriamos: ficávamos com uma história para contar aos amigos - que, por sua vez, também sorririam. Não fico com medo. É meu intento fazê-lo sorrir, afinal a vida é tão curta para darmos vital importância a duas marcas de tinta desenhadas na estrada.
    Tenha um bom dia e sorria ao ler as minhas letrinhas. Este é um bairro de gente boa e a diversidade colorida dos seus habitantes deve ser motivo de orgulho. Há espaço para nós todos.

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                                                                                  Guida Brito


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