Há muito que não visitava a cidade que me educou e viu
nascer: Beja. Recordo-a na imensidão da planície, entre a mutação persistente
de um colorido que fazia desta região uma das belas do mundo. Recordo: o verde
trigais; o amarelo dos pimpilhos; o branco da magarça; o roxo da sevagem; os
cinzas que antecedem a chuva; o vermelho das papoilas… recordo os coelhos, as
lebres, as perdizes, os bibes…
Recordo o sentido da rotatividade que,
contrastando, dava vida ao azul de um céu sempre puro. Um olhar sempre novo.
Técnicas ancestrais de exploração da terra, não deixaram perder uma matriz
ecológica que protegeu a planície e
permitiu, ao longo dos séculos, alimentar a nação e manteve este lugar insólito
como um dos mais belos do Mundo. Lá, onde a vista não alcança, descansava o
olhar num horizonte tão longo, belo e
definido.
Fui a Beja e fiquei chocada: petrifiquei o olhar na
inexistência da planície. Um extenso olival, onde as árvores eram tantas que
não cabiam no terreno ocupado, era apenas intervalado pela vinha plastificada e
por intervenções que removeram a camada superficial, de forma profunda, do
solo, na sua totalidade.
São visíveis, ainda, alterações a nível da
orologia. Estes terrenos, no espaço de
cinco dias, juntaram-se a outros tantos
e deram origem a milhares de hectares de olival.
Não há vida na planície; não há
vida nem rochas: removidas repousam num cemitério criado para o efeito.
Percorri uma área de 33 km (e sei que a área é muito superior); de toda a imensidão que ladeia a estrada: existe
apenas um superintensivo olival. São milhares e milhares de hectares. Do
horizonte já nem há memória; o plantio impede que se vislumbre o que me
pareceu: o maior crime ambiental em
Portugal.
Cemitério de rochas
Fiquei incrédula com o infindável que a minha vista não
alcança e decidi pesquisar: o que se passa na planície de Beja que parece incógnito
ao país?
De imediato, percebo a pequenez do que visualizei. A
catástrofe é muito mais grave- a ser verdade as parcas notícias de alguns dos
principais meios de comunicação portugueses.
De acordo com o que li, a devastação não se limita à
totalidade da flora e da fauna; engloba a totalidade do património arqueológico
e paisagístico. Centenas (se não mais) de sítios arqueológicos foram profanados
e destruídos: uma Necrópole da Idade do Ferro; uma ponte, um aqueduto e uma
villa da época romana; um dos mais importantes “recintos de fossos” da
pré-história portuguesa e muitos outros, inscritos no Plano Diretor Municipal
(PDM) de Beja como área de sensibilidade arqueológica (um dos casos que relato
refere-se a uma zona com mais de 18 hectares de importantes vestígios
pré-históricos).
A intensa mobilização dos solos, deixou visíveis materiais que
comprovam a total destruição de (de acordo com o que li) centenas de sítios
arqueológicos (no bloco de rega Baleizão-Quintos, as equipas do Impacte
Ambiental registaram 193 ocorrências de âmbito arqueológico).
Avancemos, a minha
indignação é muito grande.
Percebi que em Beja não se sai da cidade e as janelas devem
estar fechadas. Ninguém viu ou tomou conhecimento do grave atentado ao património
que circunda a cidade? É um caminhante que ao deparar-se com a destruição do
“povoado da Salvada 10” decide contatar um arqueólogo (a planície, ainda, não
viram que já lá não está); e este informou a Direção Regional de Cultura do
Alentejo (DRCA). Verificada e constada a sua total profanação:
“Os proprietários
foram identificados e notificados pela DRCA para suspender a intervenção para
que fosse avaliada “a extensão dos danos e ponderadas as medidas corretivas”
com a indicação de que a “inobservância de providências limitativas decretadas
constitui crime” .
Mas não suspenderam e continuam; e continuam numa intensa e
total movimentação dos solos.
É incrível. No Alentejo, conseguem-se esconder milhares e
milhares de hectares de um olival superintensivo e as pessoas não vêem o que
destroem: “os autarcas de Beja não receberam qualquer pedido para a plantação
do olival nem para a instalação do sistema de rega”; os proprietários das
máquinas são surpreendidos pelo Jornal
“Público” quando este questiona sobre as profanações; apesar de
alegadamente terem destruído património, não sabiam da sua existência e
garantem ter cumprido a lei: “implicou rasgos na terra que “não ultrapassaram
os 30/40 centímetros”- argumento contrariado pelas dimensões dos socalcos que
vi e das rochas retiradas e depositadas no cemitério. A intervenção foi muito
além do referido, por toda a planície.
As profanações do património histórico e paisagístico são
atribuídas às culturas superintensivas de amendoeiras e olival. No entanto,
pelo que observei, a vinha também me parece responsável pela danificação do
património paisagístico.
Não se cansem que a história ainda é longa- infelizmente.
Após este primeiro contato com a inércia do país, decidi
saber a quem pertenciam as terras e quem as explorava.
Encontrei esta referência relativamente às culturas de
amendoeiras: “Prado Portugal S. A. terá arrasado “quase duas dezenas de sítios
arqueológicos” para plantar amendoeiras, segundo relata o jornal”.
Entre o olival, brilhava um edifício e o nome “Oliveira da
Serra”: o edifício é apresentado como o maior lagar do mundo (fica bem a um
país tão pequeno); “Oliveira da Serra” é o azeite que sirvo na minha mesa
(doeu-me e, não havendo explicação que contrarie tudo o que fui lendo,
observando e deduzindo, ficarei envergonhada).
Aqui e ali fui retirando informações. Pouco percetíveis,
para mim. Compra-se, vende-se e formam-se grupos; não sabemos quando nem onde e
quem fez. Pelo que percebi: a Sovena é proprietária da “Oliveira da Serra” e veicula na
sua página : “ é em 2007, em parceria com a Atitlan, que se cria o projeto
Elaia, cujo objetivo é a plantação de cerca de 10 mil hectares de olival”. Este
projeto adquiriu olivais à SOS Corporación Alimentaria- empresa de capitais
espanhóis.
O projeto Elaia destinava-se a "criar um dos maiores e
melhores" olivais intensivos (200 a 300 árvores por hectare e sistema de
rega gota a gota) e transformou-se em culturas superintensivas (de 1800 a 2000
árvores por hectare). Pelas minhas
contas: muitos hectares têm mais do que 2000 árvores.
Não sei quem foi; mas sei que a profanação é intensa. Mesmo
com o sistema gota a gota o Alqueva depressa se esgotará. Não podemos esquecer
que o mar Aral (o maior do mundo) desapareceu em menos de quarenta anos devido
ao cultivo do algodão; dele, não restou vida: são os químicos os reis do solo,
numa área de milhares de quilómetros. É muito cedo para se saber o verdadeiro impacto
da situação, na saúde dos que lá habitaram: uma vez que as mutações genéticas
ocorrem essencialmente na quarta geração. Será este o destino do Alentejo? Não.
Pelas dimensões da barragem do Alqueva, o Alentejo não terá dez ou vinte anos
de vida.
É tão grave a situação que decidi consultar a lei. Faz-me
confusão que ninguém reaja ou limite a atuação destes grupos (ou de quem, de
facto, está atrás do fim de uma região tão linda). Não consigo perceber os
benefícios que a região obtém da destruição do seu património e da contaminação
de solos e lençóis de água. Emprego?
Li tanto sobre a existência de
trabalhadores, oriundos de países estrangeiros, que vivem em regime de
escravatura. E quem quer um emprego que signifique o nosso fim, dos nossos
filhos, netos… Estará o meu país a destruir-se e a permitir a existência de
escravatura para enriquecer grandes grupos? Será que Portugal não vê o impacte
ambiental das atividades desenvolvidas? Temos ministro da agricultura? Não
percebo nada de política.
Consultei o site do Ministério da Agricultura e partilho o
lá veiculado:
“Os compassos a usar dependem da variedade, do solo, da
possibilidade da cultura ser ou não regada e do destino a dar à azeitona - azeite
ou conserva.
Para azeite devem ser plantadas entre 200 e 300 árvores/ha,
devendo as linhas distarem 7 m entre si, para facilitar a colheita mecânica.
Para conserva podemos plantar mais de 300 árvores/ha”
Ops! Senhor Ministro? Não vi sete metros. Sabia que as
plantações destinadas ao fabrico do azeite, no Alentejo, são de 2000 ou mais
árvores por hectare? Concluo que aquele que era um dos melhores azeites do
mundo: passa a óleo de gota do Alqueva com o dobro dos produtos químicos.
E os sobreiros e azinheiras? Há muitos por ali. Consultei o
DIÁRIO DA REPÚBLICA — I SÉRIE-A N.o 121 — 25 de Maio de 2001
“)
Povoamento de sobreiro, de azinheira ou misto —formação vegetal onde se
verifica presença de sobreiros ou azinheiras, associados ou não entre si ou com
outras espécies, cuja densidade satisfaz os seguintes valores mínimos:
i)
50 árvores por hectare, no caso de árvores com altura superior a 1 m, que não
atingem 30 cm de perímetro à altura do peito;”
Ops! Senhor Ministro da Agricultura? A lei não fala em 2000
árvores.
O Diário da Republica pode estar enganado? Porque não se
faz cumprir a lei?
“Nos povoamentos de sobreiro ou azinheira não
são permitidas:
a)
Mobilizações de solo profundas que afectem o sistema radicular das árvores ou
aquelas que provoquem destruição de regeneração natural;
b)
Mobilizações mecânicas em declives superiores a 25%;
c)
Mobilizações não efectuadas segundo as curvas de nível, em declives
compreendidos entre 10% e 25%;
d)
Intervenções que desloquem ou removam a camada superficial do solo.”
A
camada superficial do solo nem sequer existe.
Artigo
19.o
Embargo
A
Direcção-Geral das Florestas e as direcções regionais de agricultura poderão
requerer ao tribunal competente o embargo de quaisquer acções em curso que
estejam a ser efectuadas com inobservância das determinações expressas no
presente diploma.
Artigo
20.o
Medidas
preventivas
A
Direcção-Geral das Florestas e as direcções regionais de agricultura podem
apreender provisoriamente os bens utilizados nas operações ou intervenções em
áreas ocupadas por povoamentos de sobreiro ou azinheira, ou por exemplares
isolados destas espécies, efectuadas com desrespeito ao disposto no presente
diploma e adoptar as medidas destinadas a fazer cessar a ilicitude.
Artigo
22.o
Sanções
acessórias
Sempre
que a gravidade da infracção ou da culpa do agente o justifique, o Ministro da
Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas pode aplicar ao infractor as
seguintes sanções acessórias:
a)
Perda, a favor do Estado, de maquinaria, veículos e quaisquer outros objectos
que serviram ou estavam destinados a servir para a prática da contra-ordenação;
b)
Perda, a favor do Estado, dos bens produzidos pela prática da infracção,
incluindo a cortiça
extraída
e a lenha obtida;
c)
Privação de acesso a qualquer ajuda pública por um período máximo de dois
anos.”
Não
se espantem: descobri que a plantação de Olival é subsidiada. Pagamos: o fim da
planície; a degradação da qualidade do azeite; a poluição; a destruição da
fauna, da flora e do património histórico; a existência de escravatura- e,
certamente, não referi tudo.
É possível desenvolver uma região sem recurso ao crime e à
escravatura- ambos ocorrem, na sua forma gravosa, no Alentejo que vos descrevi..
É esse desenvolvimento que todos queremos. A lei portuguesa não pode
aplicar-se, apenas, à pessoa singular. Os grandes grupos tem a obrigatoriedade
de a cumprir e o nosso país o dever de os sancionar aquando do incumprimento.
De contrário, a legislação portuguesa tem que ser alterada; deve, obrigatoriamente, referir quais são as
leis e quantas pessoas deve ter um grupo para não haver obrigatoriedade no seu
cumprimento. Ou seja, definir um número de pessoas, a partir do qual: qualquer
ação é considerada “não crime”.
Vamos
continuar calados e a discutir a vida do
vizinho do lado?
Ler também:
Escrevi este artigo há mais de um ano; o não terem sido tomadas quaisquer medidas, permitiu uma dimensão brutal que vai além do que qualquer um de nós imagina: Genocídio é a palavra que se adequa. Após muitos meses de pesquisa, escrevi o artigo que se segue. É muito extenso para ser lido via internet, as pessoas ocorrem ao que é imediato, no entanto, fica o desafio: ser capaz de o ler. Longo, duro, doído, comovente mas verdadeiro, mostra a Agonia, a Doença e o Desalento que se vive no Alentejo; espera pela sua leitura, clique no link para ler:
Outros artigos, sobre o tema:
https://navegantes-de-ideias.blogspot.com/2019/04/olivais-do-alentejo-o-crime-e-cometido.html
https://navegantes-de-ideias.blogspot.com/2018/02/destruido-todo-o-parque-natural-do.html
https://navegantes-de-ideias.blogspot.pt/2018/02/fortes-novas-alentejo-desenvolvimento.html
Sem Sorrisos
Guida
Brito
(A
melhor amiga de “A”)