Em postura recorrente, os alunos portugueses foram
catalogados “em bons” e “menos bons” e separados por turmas. A legislação é
contrária à sua existência mas ao abrigo da autonomia e flexibilidade dos Agrupamentos
de Escolas, foram constituídas e têm o aval do Ministério da Educação
(provavelmente, esqueceu-se das leis que elaborou e aprovou).
Em meu entender: um retrocesso, sem precedentes, na
garantia dos direitos das crianças e dos direitos humanos.
Portugal, mesmo pertencendo à ONU, demorou muito
tempo a adotar (e muito mais a aplicar) leis inclusivas, presentes na
Declaração dos Direitos Universais das
Crianças. No entanto, conseguiu acolher, no seu seio, crianças tradicionalmente
excluídas, adotando uma educação integrada que respondia às necessidades
educativas de todas as crianças. Foi um processo muito longo, conseguiu-se uma
escola inclusiva.
Deste modo, a escola inclusiva foi uma realidade
(embora, em muitos casos, existisse carência de técnicos que o Ministério não
disponibilizou): num todo colorido e diversificado, individualizaram-se e
personificaram-se estratégias educativas, promoveram-se competências universais
que permitiram a autonomia e o acesso à condução plena da cidadania por parte
de todos.
Uma nova escola lecionava, de forma prática, as noções de cidadania,
tolerância, respeito pelo outro, partilha, interajuda… Aos poucos, foi sendo
claro que não há mais saber ou menos saber: há saberes diferenciados e se o meu
bom é o teu mau, ajudo-te; tu farás o mesmo com o teu bom que é o meu calcanhar
de Aquiles.
Integrámos as crianças tradicionalmente excluídas;
hoje, retiramos os outros. Não é um regresso ao passado?
Para mim, separar as crianças com base em
“capacidades cognitivas ou capacidades de trabalho” é uma atitude racista
mascarada de pureza.
Todos aprendemos através da experiência e uns com os
outros: se os alunos com mais dificuldades ficam privados da aprendizagem com
os seus pares; os outros também o ficam; e, ambos, apresentarão graves lacunas
a nível da aceitação, da tolerância, do respeito pelo outro, da partilha...
Relembro um dos Direitos Universais das Crianças
"Princípio X
- A criança deve ser protegida contra as práticas
que possam fomentar a discriminação racial, religiosa, ou de qualquer outra
índole. Deve ser educada dentro de um espírito de compreensão, tolerância,
amizade entre os povos, paz e fraternidade universais e com plena consciência
de que deve consagrar as suas energias e aptidões ao serviço de seus semelhantes."
Apartheid é uma palavra africana que significa
"separação", ou "o estado de ser separado"; ao separar os
alunos com base nas suas características mentais ou de trabalho, estamos a
recriar cenários que, no passado, foram permissivos de privação de direitos, de
injustiças, de dor, de milhões de mortes.
Será que o Mundo não consegue viver
sem elites?
Temo o dia de amanhã: o dia em que se acentuar a intolerância; o
dia em que as universidades escolherão os “bons”; o dia em que as empresas escolherão os “bons”, o
dia em que os “bons” têm que comprar uma redoma para se proteger das
incapacidades dos outros (estou a ser irónica); o dia em que os “bons” não
aguentam, o dia em que os “bons” falham, temo as atitudes dos “bons” e dos
“menos bons”.
Pergunto:
- se “O Programa do XXI Governo Constitucional
estabelece como uma das prioridades da ação governativa a aposta numa escola
inclusiva onde todos e cada um dos alunos, independentemente da sua situação
pessoal e social, encontram respostas que lhes possibilitam a aquisição de um
nível de educação e formação facilitadoras da sua plena inclusão social. Esta
prioridade política vem concretizar o direito de cada aluno a uma educação
inclusiva que responda às suas potencialidades, expectativas e necessidades no
âmbito de um projeto educativo comum e plural que proporcione a todos a
participação e o sentido de pertença em efetivas condições de equidade,
contribuindo assim, decisivamente, para maiores níveis de coesão social.”; qual
é o cabimento legal para a existência destas turmas que separam ao invés de
incluir, integrar?
- se a lei é bem explicita ao referir “Afasta-se a
conceção de que é necessário categorizar para intervir”; o que são estas turmas
que separam crianças com base nos “bons” e “menos bons”, com base “nas
capacidades intelectuais e de trabalho”?
E muito mais existe na lei, no bom-senso e nas
convenções internacionais que Portugal assinou e se comprometeu a cumprir que
são contrariadas com a existência de turmas que separam as crianças, com base
nas suas caraterísticas físicas e psíquicas.
Pergunto, ainda:
Não são os anos letivos que separam as crianças com
base nas aprendizagens apreendidas e nas que já lhes foram lecionadas; então, para
que necessitamos de mais categorias?
Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994). “O
princípio fundamental das escolas inclusivas consiste em todos os alunos
aprenderem juntos, sempre que possível, independentemente das dificuldades e
das diferenças que apresentem”
Sem sorrisos
Guida Brito