Fortes
Ninguém imaginaria que a promessa de água, do grande lago Alqueva, à planície seca e árida fosse o início do fim.
Hoje, abordamos a consequência do pseudodesenvolvimento nas gentes de Fortes Novas. Alegadamente, fossas a céu aberto e emissão de gazes cancerígenos, por parte das fábricas de transformação do bagaço da azeitona, constituem a causa de um viver muito aquém do limiar aceitável para o ser humano.
A indignidade maior das consequências das monoculturas surge, de facto, na localidade de Fortes Novas. E não sei como a escreva, de forma a transparecer a verdadeira dimensão de tão grande crime que ocorre no meu país. Ali, a morte é um bem conseguido em vida.
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Fotografia de Artur Pissaro |
Definha-se, numa poluição tão intensa que não deixa ver a pessoa com quem dialogamos. São sobretudo idosos, envergonhados e doridos pela morte que chegou quando o coração ainda bate e a mente sabe que não há saída de um crime monstruoso, praticado com o consentimento dos órgãos de poder e de um país que não podia permitir esta aberração. Permanentemente, não há ar.
Assoam e cospem sangue, vivem enclausuradas na poluição que têm dentro de casa.
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Fotografia de Artur Pissaro |
No início, durante 10 anos, chamavam-lhe parvos e referiam que o fumo era vapor de água. Os órgãos de poder negavam, os agricultores negavam, as fábricas de transformação do bagaço negavam, as primeiras análises foram efetuadas no único dia do ano em que o vento levou a poluição. Após muita luta, por parte algumas pessoas (muitas choram no anonimato, ameaçadas ou com medo de perder o transporte, à quinta feira, que lhes permite sair da povoação) a fábrica reconheceu que o vapor de água era mais denso e construiu uma nova chaminé. No entanto, esta e as outras duas, visivelmente, continuaram a emitir espessos fumos enegrecendo a vida das pessoas que habitam a 200 metros (134 metros, no caso da Dona Rosa Dimas).
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"Não se consegue viver" - Rosa Venâncio, Fortes, Alentejo |
Devíamos combinar um dia e irmos todos, Portugal em massa, a Fortes. Acreditem, quem lá vai não precisa de análises: prefere a morte rápida a ter que respirar aquilo todos os dias, a todas as horas, a todos os minutos, a todos os segundos. É, sem sombra de dúvida, o crime mais hediondo que se possa praticar.
Assoam e cospem sangue, vivem enclausuradas na poluição que têm dentro de casa; evitam a rua porque intensifica estes sintomas e o ardor nos olhos e garganta. Não saem de casa, não convivem com os vizinhos, não veem outros seres humanos, estão sós, prisioneiros do desenvolvimento económico e da ganância alheia.
Choram doridos, morreram.
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"O meu cuspo é sangue, Quero recuperar a minha saúde" - Rosa Dimas, Fortes, Alentejo |
Aplicaram as poupanças de uma vida num Alentejo puro e são; são idosos, viviam da reforma e das hortas; hoje, em fome envergonhada, sem recursos financeiros, estão prisioneiros e é o sangue que lhes sai das entranhas.
Finalmente, em junho de 2018, a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) fez análises e deu a conhecer os resultados:
“Poluentes químicos associados a emissões confinadas e difusas”. Na composição química das partículas libertadas pela actividade da fábrica de bagaço de azeitona, foi identificada a presença de “monóxido de carbono, dióxido de enxofre, compostos cancerígenos (hidrocarbonetos policíclicos aromáticos) e outros gases (amoníaco, ácido sulfúrico e sulfureto de metilo”). Um dos gases apresentava valores 40% acima do suportável pelo ser humano. Perante este e outros pareceres, incluindo um do Sistema Nacional de Saúde, foram solicitadas medidas urgentes para que estas pessoas pudessem viver, o fim dos seus dias, com dignidade. Todos os órgãos de poder empurram uns para os outros e nenhum faz ou fez absolutamente nada, desculpando-se com o vizinho: judiando com estas pessoas. E a fonte de toda esta poluição continua trabalhando, indiferente às vidas que arrasta.
Recentemente, o Senhor Ministro da Agricultura reconheceu, pela primeira vez, o horror que ali ocorre. Referiu que ou a fábrica deixava de poluir ou se fechava. Palavras que não viram ações como reflexo. Não houve qualquer ação que devolvesse a vida a estas pessoas.
Para minimizar os efeitos negativos na população, a fábrica perguntou à população: se queriam óculos, uma capela e arranjos na escola primária. A população respondeu: a escola está fechada; não nos falta visão mas sim o ar; não precisamos rezar, são vocês que decidem se temos ou não: ar.
Há umas semanas, ocorreu mais um congresso para se debater este tema; provavelmente ainda não sabem que aquelas pessoas estão a morrer de forma desumana e que era hoje que devia ter acabado a sua agonia.
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"Não nos façam sofrer mais como até aqui. Perdemos saúde e o que construímos ao longo da vida." - José Barrocas, Fortes. |
De bradar aos céus, foi a humilhação provocada pelo senhor José Velez, vice-presidente da Direcção Regional de Agricultura e Pescas do Alentejo (Drapal), Em conferência, após ouvir o choro destas pessoas, disse-lhes: “desmistificar papões”; “ambiente é fundamental, mas o desenvolvimento é crucial”; “desenvolvimento tem os seus custos e as suas facturas” – ou seja, opino eu, considera aceitável o envenenamento e a morte destas pessoas em troca do desenvolvimento.
Belos políticos, é muito bem gasto os ordenados que lhe pagamos. O à vontade é tanto que nem se inibe de aprovar a doença e a morte de seres humanos, a troco de um desenvolvimento que ocorre não sabemos para quem. Terá, além do ordenado que lhe pagamos, subsídios dos capitais espanhóis envolvidos na fábrica? Algo tem que condicionar o que profere, não acredito que alguém, são mentalmente e livre de palavras empenhadas, possa transmitir concordância com este atentado à vida.
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"Nem podemos estar em casa, dói-me muito." - Maria Joaquina Camacho Caixeirinha |
Após o congresso, a APA instalou sensores para realizar novas análises ao ar de Fortes: a fábrica, estava presente aquando foi tomada esta decisão, parou as máquinas. Entretanto, as máquinas das análises ao ar foram desligadas devido à apanha do trigo que emite muitas poeiras; a fábrica soube e, no imediato, aproveitou para trabalhar a todo o gás.
Após o congresso, outra importante medida foi tomada: enviar uma equipa de saúde para analisar a população. Em tons de estou permanentemente no telemóvel, entre mensagens e joguinhos, foi entregue, a cada idoso, um inquérito. Afinal, o estudo não pretendia saber as marcas da doença provocada pela respiração contínua de gases venosos, queria saber se a população era louca, se poderia recorrer ao suicídio e se pretendia matar os que lhe infligem tamanha aberração.
No Alentejo, brinca-se, judia-se com a dignidade e a vida das gentes.
Sempre que escrevo emito a minha opinião, após analisar documentos reais e fidedignos.
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Sem sorrisos
Guida Brito