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quinta-feira, 2 de março de 2017

Parafusos soltos e vestidos por arrumar





Contos e crónicas - Navegantes de Ideias

Um parafuso solto, qualquer que seja o seu tamanho, não constitui um problema grave; qualquer mulher sabe que uma lima de unhas, um garfo, uma colher, uma tampa de lata vazia ou o que se lhe assemelhe resolve o problema: olhamos o tamanho do dito e sabemos, de imediato, qual o objeto (que se situa nas imediações) que cabe na ranhura e o aperta até à exaustão. Verdade? 



Em último caso: qualquer faquinha resolve os mais atrevidos que decidem avançar sem autorização; não cabem no buraco ou, simplesmente, decidem não funcionar. 

Eles não; eles necessitam comprar um móvel,  retiram os nossos vestidos dos armários e pensam em mudar de casa. Cheguei à simples conclusão que os homens são todos iguais (funcionam todos da mesma forma); basta-nos escolher o embrulho e tentar esquecer o interior repleto de nunca sabemos o quê.

Acho que tudo acontece ao fazerem 18 anos; nós somos mulheres desde que nascemos: habituamo-nos a resolver com a prata da casa, a orientar e a solucionar sem que, para o consumar, necessitemos de parar o mundo e ver como está a lotação no planeta ao lado. 



Nós resolvemos;  eles gastam-nos o tempo e a nossa paciência se não aprendermos a sorrir cada vez que se solta um parafuso- seja ele fácil ou difícil de enfiar no buraco.

Soltou-se um parafuso cá em casa: eu vi mas o Carnaval… decidi que sambar na avenida (mesmo que vestida de cogumelo) seria muito mais sorridente do que pôr o atrevido no lugar, por meio de meia dúzia de torcedelas.

Esqueci-me  que o homem da casa já fez 18 anos e, ultimamente, faz jus ao número que ostenta com cara de gente feliz. Viu o parafusinho e pensou exatamente isso: sou o homem da casa. Retirou o dito; retirou a bucha; retirou a calha; escangalhou a persiana que deixou de funcionar e anda atrás de mim, há dias, para irmos comprar um parafuso. Hoje, foi o dia.


Impensável ir a uma loja onde tudo é mais barato: “Mãe, não são de qualidade”. Acedi; embora ciente que eu  tinha apertado aquela coisa e não comprava cousa nenhuma. Lá pediu o menino o que por acaso não havia: só mais comprido. Pergunta-lhe o dono do botequim (homem - o embrulho é que era diferente):
- Podes cortar; tens uma serra elétrica?
- Quanto custam?
Ai! Ai, ai, ai, ai! A porra do parafuso vai esgotar o saldo do mês, dos meses seguintes e estragar-me as férias. Comecei a ver as Lofoten lá muito longe mas  jamais pensei que um simples parafuso me obrigasse a comprar móveis e a mudar de casa.  Recusei a compra da serra e sugeri que experimentassem se o diabo do parafuso cabia no buraco da porca que parecia com profundidade suficiente para o receber, mesmo que comprido. E cabia, servia na perfeição. Não satisfeito, o homem da minha casa pediu uma bucha nova; betume para tapar o buraco na parede que, entretanto, tinha alargado e arame para dar uso a uma máquina de soldar que tinha acabado de comprar.

Contos e crónicas - Navegantes de Ideias
Não havia betume, o senhor sugeriu prego liquido (as coisas que eu oiço por ter sambado na avenida). O prego líquido era ótimo mas necessitava de comprar uma pistola para o poder usar; era excelente ter um berbequim para esburacar depois de tapar. Não sei como me contive para não gritar;  apeteceu-me chorar os sorrisos que larguei enquanto sambava longe do parafuso que podia ter torcido e não torci. Nem vos conto a parafernália de ferramentas e afins que  me entrou pela casa adentro devido a uma simples torcedela que eu devia ter dado e não dei. Satisfeito, o meu mais que tudo cá da casa sugeriu:
- Mãe, preciso de um móvel para colocar as minhas ferramentas. O melhor sítio para as colocar era no teu armário, retiras os teus vestidos. O ideal seria trocar de casa: mais um quarto fazia-nos muita falta.





Não sabem vocês que começamos com uma simples chave de fendas que por não caber em todos os parafusos foi substituída por um conjunto delas; que, por sua vez, também foi substituído por um conjunto de qualidade. Sendo tudo isto insuficiente para responder à necessidade de apertar um parafuso, por ano, adquiriu algumas facas cheias de utensílios que poderá, um dia, necessitar: tudo isto acompanhado por uma caixa de ferramentas. Face à necessidade de organização, a Caixinha  já se torna insuficiente, requer a mudança de casa.

Contos e Crónicas - Navegantes de Ideias


Perguntam vocês: o parafuso está no lugar? Não, entretanto a fita partiu-se e é preciso comprar. Pensando bem acho que nem sequer quero o parafuso no lugar: se vou mudar de casa não preciso da persiana a funcionar.

Aposto que o tema do próximo Carnaval é “ Parafusos soltos e vestidos por arrumar” ou " Desenroscou-se um parafuso? Temos casas para alugar."
Sorrisos
Guida Brito

sábado, 3 de setembro de 2016

“Já fiz. Podes vir”




Não havia esgotos nem wcs: era no lado detrás do chaparro, do muro ou de uma simples oliveira que o alívio espreitava entre sorrisos “Já fiz. Podes vir”. Não havia jornais e a erva nem sempre crescia ali- sejamos honestos. Os índios, os cowboys, a macaca, o caracol, o pião, a corda, a bruxa ou o Tarzan eram pertença dos pequenos saltimbancos da rua. Em ruas não alcatroadas, descalços e coloridos de medalhas ( renovadas à segunda-feira, após o mergulho de domingo nas cálidas águas aquecidas, à lareira, e depositadas num velho alguidar) éramos cuidadosamente zelados pela aldeia:
- Sai daí. Olha que apanhas.


Ali, nas ruas, onde nem sequer havia calçada, aprendemos: a baixar os olhos num ato de reconhecimento de culpa; a perder os dentes em defesa de uma amigo ou a descer a ladeira sem travões; a abraçar; a chorar; a rir; a cair; a levantar… Fomos, talvez, os últimos saltimbancos a crescer no luxo que é a ausência até da pedra calcetada. Num mundo que se alterou tão drasticamente, não sei onde nos perdemos mas cada vez mais é notório o esconder e o abrilhantar (de forma errónea) as origens: o  embrulhar o “Eu” adornando-o com meia dúzia de laços luzidios de origem duvidosa. Num mundo de selfies, facebook, instangram… partilhamos e sobrevalorizamos um “Eu” egoísta mascarado de perfeição, sucesso ou vitória. E não somos, não somos nada do que partilhamos: todos “cag amos” e “cag ámos” atrás do muro. Nem eu sou só sorrisos, loucura e fadas nem vós só sucesso e perfeição. Somos dor; somos bem-estar; somos sorrisos; somos choro; somos dúvida; somos certeza; somos amor; somos ódio; somos lembrados; somos esquecidos; somos alegria; somos tristeza; somos sucesso; somos fracasso; somos bons; somos maus; somos humanos. Em cada um de nós existe um pouco de tudo. O que nos define é o que usamos maioritariamente na interação com o próximo, com o amigo e até com o inimigo. O que nos define é o que usamos em momentos não programados.
A queda da justiça, a incapacidade do sistema de saúde, uma escola entrouxada de exigência (onde o saber se apresenta sempre como insuficiente), empregos a tempo inteiro encaixotaram-nos em solidão. E na lacuna do contato  com o próximo, o facebook, o instangram e outras aplicações surgem à distância de um clique, no facilitismo da poltrona da sala ou da mesa do café. Num mundo sem cheiro nem som ou tato é fácil esconder as rugas. É fácil ser rei ou rainha; é fácil ser bom ou ter sucesso mas também é fácil magoar; denegrir ou humilhar. Se por um lado estas aplicações preenchem lacunas, por outro encurralam-nos no “não preciso ser; basta mostrar”.
Eu tenho saudades de um bom empurrão; do calor de um bom abraço. Tenho saudades do limpar, com a mão, a lágrima de um amigo; de sentir a tua mão que enxuga a minha. Tenho saudades da tua mão no meu cabelo; saudades da minha no teu. Eu tenho saudades do cheiro, do som, do toque da tua pele e do “Já fiz, podes vir”.
Eu tenho saudades. E vocês?
Sorrisos

Guida Brito

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Do tamanho do mar



Era tarde ou talvez não. A imagem refletida no espelho devolvia os sorrisos, os amores, as carências, as amarguras, as alegrias, os momentos, as tristezas; marcas do tempo, marcas da vida- se assim lhe quisermos chamar: a importância do corpo é relativa. Não se poupou de adornos que realçavam o que de melhor  há em si (como se o “si” fizesse parte do corpo). Um salto alto, uma saia justa direccionavam o olhar para umas pernas esbeltas: escondiam a carência de abraços, a carência de ti.
Sorriu, realçando os momentos patentes no rosto, lembrava-se… Encontrou-o a meio caminho da meia idade (uma meia idade indefinida- nunca sabemos o quão curta ou longa é a vida). Não o encontrou: encontraram-se- e, essa, era a diferença que marcava esta história da sua vida. Sentiram-se antes de se olhar; souberam-se antes de acontecer. Nunca conversaram, nunca se olharam mas sabiam-se e cada um tinha consciência do outro: não raras vezes se avivavam à memória. Roçavam como quem não quer que aconteça. Ocupavam-se, quebrando a solidão até ao dia em que soltassem as amarras do destino que teimava em os afastar (o destino só acontece quando fugimos do vulgar e decidimos ousar). Cada um vivia como se não soubesse do outro: uma ignorância certa do abraço que, um dia, os iria tocar.
- Espero-te mas já estás aqui- sorriu.
Provavelmente iriam ver o mar, o mar é tão grande… e o que sentiam era do tamanho do mar.
Sorrisos

Guida Brito

Metade de mim/ Metade de ti



Não consegui- nem por um instante- desviar o olhar. Beberiquei com sofreguidão- incrédula entre os raspanetes que metade de mim teimava em passar- cada gesto, cada passo…
“ Não! Não é flor que se cheire!”- raspaneava a minha metade. Olhá-lo, cheira a traição do que de mais puro há em mim.
A outra? Bem, a outra metade alheava-se do corpo perfeito: sem uma grama de gordura, alto, forte, uns braços… escondendo por completo a calvície. A outra metade, meus amigos, observava a ternura dos gestos e o afago se fazia sentir ao primeiro olhar.
Detesto-o- por razões óbvias para mim (não para vós) pois dois mais dois nunca são quatro. Detesto-o, não o posso olhar. Foi duro! A leoa, que há em mim, e o vulcão, imprevisível, que me preenche justificam as furibundas faíscas que ainda saltam e ressaltam do meu olhar. Enquanto meia Guida marca o seu território a outra deixa-se levitar e num olhar curioso abre espaço para a dúvida e para o conhecimento: uma guerra que provavelmente ansiava paz.
Lá estava ele, um adónis e um pedaço de mau caminho (é certo) mas desprezível em tudo o que se me avivava à memória. Uma besta quadrada (finalmente fui direta- não me poli pelo socialmente aceitável).
Besta quadrada! Não pode ser tão quadrado assim. E o olhar com que protege e vigia as suas crias? E os gestos puros que orientam, mimam e ensinam? E a relação que notoriamente os une? E a cumplicidade? Esfrego os olhos e especada, no lugar central da fila da frente (o único ocupado no anfiteatro local) vejo tudo e tento interiorizar um filme que imaginaria ser pura ficção. Observo um ser doce, paciente que em tons puros ressalta a excelência do ensinar. Em êxtase do que bebia o meu olhar, apenas o polvo que, no final, bates cruelmente contra a rocha me relembram a tua e a minha outra metade.
O palco é uma praia, escolhemos ambos, casualmente, o lado menos habitado. É indecifrável o cruzamento do olhar; certamente, a surpresa e o ódio prenderam-se para não se soltar: a indiferença é a arma de quem quer magoar. Sim, sei que me viste e também tu atreveste o olhar. Num palco que foi só teu, só tu o sabes decifrar.

Das nossas metades conhecemos as guerreiras. Hoje, não esqueci mas fica o conhecimento que, afinal, és igualzinho a mim: um bruto que sabe amar. 

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Histórias da minha vida- como reclamar o que nos é devido.

Navegantes de ideias


Amei esta época da minha vida. Fiz tantas loucuras.Lembrei-me, neste tempo de crise, de uma crise pela qual passei.





Era uma jovem e os jovens tudo podem. Depois três meses sem receber, nem sei porquê, e após muitos pedidos e reclamações restavam-me cerca de 50 escudos, se tanto, na minha rica carteirinha.


Era sexta-feira, bebi um cafezito e comprei um bilhete de autocarro: Ribeira Grande- Ponta Delgada. Entrei na Direção Geral de Educação e sentei-me, faltavam 5 minutitos para a dita fechar. 

Quando inquirida sobre a minha presença, abri a carteirita, mostrei todo o espaço que se encontrava repleto de vácuo e disse:
- Há 3 meses que trabalho sem receber, gastei o último tostão no autocarro, não tenho que jantar nem como voltar para casa. Preciso das devidas mesadas.

- Vamos fechar, volte segunda feira.
- Não tenho como ir, nem como voltar; não se incomode por minha causa. Feche a portita, eu continuarei aqui sentada, segunda-feira sou a primeira a ser recebida.
Voltei, calmamente, para o meu assento.

- Saia lá, minha senhora.
- ...
- Olhe que eu, hoje, estou com pressa: tenho um jantar de amigos.
- Não se preocupe, pode sair. Se restar do seu jantar, por favor, guarde e traga na segunda, eu vou precisar.
Enrolei-me na minha rica mantinha, descalcei os sapatitos e alapei-me.



Veio uma funcionária, mais uma e mais uma... Começaram as promessas,"vamos resolver", "Pode sair que já está"...
- Nã, eu daqui nã saio, nã quero dormir na rua, prefiro dormir aqui. Até fico quentinha, trouxe a minha mantinha. Essa resposta (que o dinheiro estava na conta) já a recebi vezes sem conta e o dinheiro: nada.

As horas iam passando, não sei como não me deram um tiro. Aquilo azedou. E a alentejana nas calmas, sem sapatitos, enrolada na sua mantinha.

Mais ou menos às 20 horas, foi chamada ao local a senhora Diretora Regional. Pobrezita, já estava a jantar em família, pensando iniciar um delicioso fim de semana. Ainda não conhecia os alentejanos.
- Minha senhora, pode ir que já tem o dinheiro na conta.
- Nã, eu daqui nã saio. Essa resposta já a recebi vezes sem conta. Só saio quando o gerente do banco me telefonar a informar que a conta está na conta. 
(...)

Lá recebi um telefonema a informar que a conta tinha a conta certita. Voltei para o meu lugar e tornei e alapar-me.
- Nã! Eu daqui não saio. O gerente tem que me provar que é, de facto, o gerente do banco.

Foi o pânico, a última gota, os gritos, a confusão... E eu sentadinha.

E as horas passavam. 

Perto da meia-noite, recebi o tão esperado telefonema. O senhor gerente teve a gentileza de confirmar a sua identidade, fornecendo-me todos os dados relativos à minha conta, aos quais só eu tinha acesso. Agradeci, calcei os sapatos e nas calmas dobrei a mantinha e saí. "Boa noite e bom jantar para todos." Se não me assassinaram, neste dia, foi por pura sorte.

Pergunto:
hoje, quem aguentaria 3 meses sem receber? É a diferença entre o antes e o presente.

Sorrisos
Guida Brito


segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Abriram-se-me os sentidos e coloquei o olhar à espreita.

Há muitos anos deixei esta lembrança na casa de um amigo que a guardou religiosamente. 





Hoje, na hora do reencontro, sorriram-lhe os olhos: “tenho uma prenda para ti”. Do bolso do casaco exala um cheiro a mofo que denota, de imediato, uma antiguidade. 

Abriram-se-me os sentidos e coloquei o olhar à espreita. Persegui cada gesto seu e entre uns dedos da minha idade surgiu um velho papel amarrotado pelo tempo e amarelecido pela espera: “toma, guardei-o para ti”. 

Regressei ao passado, era jovem - muito jovem- trabalhava na ilha Graciosa e sempre sorridente cativava  simpatia e gestos doces. Shiiiiiiii…. o Senhor Florisberto… O senhor Florisberto era o dono do café Floris: passagem obrigatória depois das refeições ou antes das idas ao Moinho (a discoteca mais deliciosa que já conheci)…. Shiiii… o que um simples papelinho envelhecido de afagos avivou na minha memória!



Vai-se lá saber porquê mas o Senhor Florisberto gostava de mim e decidiu honrar-me com um cocktail : Alentejana. Cocktail que beberiquei ao longo da minha estadia na ilha e se bem lembro era o preferido pelo grupo de amigos que percorria os mesmos passos. De forma solene ofereceu-me a receita antes de partir da ilha - inadvertidamente esqueci-o em casa do meu amigo que se interessou pela receita e a recriou. Pensei-o perdido e senti alguma mágoa. Reparto convosco a história e a receita:  Alentejana.
Sorrisos
Guida Brito

terça-feira, 7 de julho de 2015

Cartinha a um vizinho

       Resposta ao bilhetinho encontrado na minha rica (por gostar muito dela) carrinha.
   Caro, Vizinho (suponho que o seja: caracteres com traços masculinos e o assunto sugere que partilhamos a mesma calçada).
Quase que tem razão, quase.



    
Já pensou que eu podia estar mal disposta, cansada, doente, alcoolizada, drogada; o meu dia podia ter sido uma m...; posso ter falta de visão; ser uma naba nas lides do estacione onde eu quero; posso não ter sequer carta de condução; alguém me pode ter feito mal; posso não gostar de fileiras; posso ser difícil de me colocar entre linhas; ou posso simplesmente não ter tomado café. Um dado pode ser “dado” como adquirido (como certo) e dessa certeza não escapo: eu estava a sorrir quando, de forma naba e incompetente, atravessei a grandura da minha companheira de estrada e não respeitei as fileiras brancas que indicam, como se fossemos todos burros (seres não pensantes- o animal não tem culpa) e todos portadores de pouca ética e inválidos no que respeita ao viver em sociedade, onde nos devemos colocar. Embora pequena e pobre criatura, tenho o péssimo hábito de andar sempre a sorrir. Sou de bem com a vida.


    Por incrível que lhe pareça, estacionei a minha companheira de aventuras de forma a possibilitar o estacionamento de outros moradores e não com o intento contrário. Às vezes preocupo-me com os outros, desculpe. Não sei se reparou, ao lado do meu veículo estava um lugar de estacionamento para pessoas portadoras de deficiência ( aqueles seres diferentes cuja mobilidade e falta de acessos os obriga a viver confinados ao espaço casa- por isso nem todos os conhecem ou têm consciência da sua existência). Esse espaço, além de não apresentar dimensões que permitam a utilização pela maioria dessa gentalha – que se pensa com direito a sair da home (não quero repetir a palavra casa) ou visitar amigos- ainda é estreitado pela existência de um balde do lixo fixo e de alguns carros (espero que um seja o seu; quem quer humanos desses na sua calçada?) que, normalmente, ocupam o passeio e vedam a utilização desse lugar para gente com um umbigo tão grande, mas tão grande, que até queria um lugar de estacionamento só para si- quem sabe para ver o sol, sentir o vento ou entrar na home uma vez por ano). Pensei que não eram seres do imaginário e, também eles, tinham o direito de sorrir de lés a lés. Desculpe! Não tornarei a pensar em ninguém que não seja eu. Até porque as dezenas de lugares vazios a 10 metros de distância e o facto de todos termos garagem (graças a deus sem acesso a essa gentinha) não impede que queiramos também o lugar frente à nossa porta, é nosso. Prometo emagrecer (já estou de dieta), encolher mais um pouco (1,50m é muita grandeza) e enfileirar-me entre linhas: estacionarei direito.



    
Desculpe lá...não considera um ato de terrorismo dirigir-se a alguém de forma anónima? Pretende que viva com medo? Não teria sido conveniente e esclarecedor referir a sua hierarquia nas gafes desta calçada? Não acha que teria sido mais feliz se no tempo que me dedicou, de forma rude, tivesse abraçado alguém? E se ao invés do que me enviou me tivesse cumprimentado e dissesse ao que ia? E se me tivesse deixado um bilhetinho simpático.... sei lá:



                       “Flor!

    Já viu como estacionou?

                    Assinado

           João, Duarte, Felismino ou outro: a sua graça."



Eu responder-lhe-ia:



                      "Bom dia, Cravinho.

    Já viu o que está ao lado?"

   E assinava, como assino estas letrinhas. E sorriamos: ficávamos com uma história para contar aos amigos - que, por sua vez, também sorririam. Não fico com medo. É meu intento fazê-lo sorrir, afinal a vida é tão curta para darmos vital importância a duas marcas de tinta desenhadas na estrada.
    Tenha um bom dia e sorria ao ler as minhas letrinhas. Este é um bairro de gente boa e a diversidade colorida dos seus habitantes deve ser motivo de orgulho. Há espaço para nós todos.

Artigo sugerido: 

As novas funções da GNR: esquecer as infrações do trânsito e dedicar-se ao controlo de faturas

                                                                                  Guida Brito


segunda-feira, 6 de julho de 2015

Histórias da minha vida: a boleia de helicóptero e a passadeira vermelha




Há muitos anos (nem tantos assim - ahahahha) fui da Graciosa a Santa Maria jogar voleibol - sim. Participei nos campeonatos (inacreditável mas verídico). 






Um jogo muito interessante: com lugar cativo no banco, em todos os jogos, quis o destino que uma craque se magoasse. Embora contrariada, lá entrei ao serviço e fiz uma boa jogada revertendo os resultados; as televisões apostaram tudo nesse momento e fizeram uma excelente reportagem - a minha imagem passou e foi visionada, vezes sem fim, para choque dos treinadores e colegas que não me anteviam um futuro risonho no desporto. 


Eu sorri e aproveitei os flaches - únicos na minha vida. Uma história engraçada mas que não termina por aqui - não fosse a minha vida uma sucessão de acontecimentos inexplicáveis. 

Aproveitei a estadia, diverti-me bué com amigos que nunca mais vi: a Elisa, o Leitão, o António Lança e o João Pestana. Na hora do regresso fiquei presa na ilha Terceira. 

Sem barco nem avião que me transportasse à ilha Branca, juntei-me a umas colegas e fomos pedir boleia de helicóptero, na base das Lages. Dois pilotos catitas, musculados e senhores de outros atributos (raridades), completamente estonteados pela beleza das jovens professoras, decidiram, com pompa e circunstância, percorrer as nuvens que nos separavam do destino. 



Chegados ao tão ansiado local: uma grande passadeira vermelha percorria a pista do aeroporto. Eh, lá! Como sabiam que íamos chegar? Não importa, vamos percorre-la. É nossa. 

Ajeitados os cabelos e retiradas algumas ruguinhas dos belos vestidos que nos adornavam: colocámos o melhor sorriso. 

Enquanto a banda, a Presidente da Câmara, os comandantes Do Sei Lá o Quê e as mais importantes personalidades da ilha ocupavam as laterais da rubra estrada que nos esperava. Fui a primeira, com muito glamour dei um passo e parei no cimo, olhei a multidão pensando: pronto! Virei vedeta do desporto. 



Observei os semblantes e cada movimento facial da multidão. Num ápice: a banda parou, tudo especou e rapidamente a Senhora Presidente deu ordem para que se retirassem. Nunca tinha visto tanta gente a fugir de mim- ahahaaha. Alguns atropelaram-se e caíram. Fiquei chocada mas depressa percebi que esperavam Sua EXª o Senhor Presidente da Republica Mário Soares.

 Entre gargalhadas, percorri a bendita passadeira de braço dado com um piloto que decidiu, também ele, aproveitar o solene momento. Jamais esquecerei a Graciosa.

Sorrisos
Guida Brito


domingo, 5 de julho de 2015

Tributo ao IC19

                                O Futuro Ali tão perto

                           
                                                   Tributo ao IC19
  Famosa pelas pontes, poucos conhecem o secretismo que encerro entre sorrisos. Nascida no interior das quentes e gélidas planícies alentejanas; lá, onde o mundo não acontece e a espera leva à morte. Atos impensados de quem não ultrapassou as linhas do horizonte. Ainda hoje me questiono: se estava escrito nos genes ou se uma infância rudimentar me encurralou numa vida plena de aventuras, num corrupio de atos insólitos e delirantes. Provavelmente, o prémio de quem desconhece o medo e desbravou cada um dos bocadinhos do seu caminho. Embora pacata, obediente e sem sal, encerrava (tal como hoje) os mais pirralhos pensamentos. Lembro-me com o sonhar sair de casa, viajar, fumar e ultrapassar a última linha de terra visível do canto do meu quintal. E, era na sombra da velha oliveira que me prometia um sol brilhante. Sonhava com o futuro, o presente era capa que não me servia. Cedo, o audível “Não vás por aí!” se tornou um desejo a concretizar e sinto que o meu futuro aconteceu quando por irreverência o contradisse. 
Ser gente fazia parte do que queria para mim. Sempre me considerei feia. Nem o “Continuas linda!” ou “ Lembro-me de ti, tal como és hoje, portadora de uma beleza incomparável.”, proferido por alguém que não me via há 40 anos (número silabado com dor) me convence ou me altera... bahhhh! Meio selvagem, bicho de mato, pedra nascida onde nem as cabras ousam trepar! Linda sou no meu sentir, no amor aos que me rodeiam, no afago aos que precisam. Linda: sou quando, na minha infantil loucura, decido ir mais além e sempre mais além (nasci no Além Tejo e o rio presente na minha face, sempre, coloriu de bravura os dias da minha vida). Linda sou quando entre sonhos, delinho o futuro e dou voz ao meu querer. Perceberam? Gosto de mim, aquele cá de dentro.
Nunca imaginei que o atrevimento inesperado de rumar à capital para conhecer meia dúzia (eram 7) de cacos de um delicioso Caneco – grupo de escreventes que teima em se gostar, mimar e abreija,r a cada palavra que salta do alto da imaginação e se alapa num ecrã com acesso ao coração - me ruborizasse a fronha, que apresento ao mundo, e irradiasse a minha vida de momentos hilariantes de tão profundo sentir.
Tanta escrita para chegar ao Ic19! Daqui a pouco estão fartos de mim! Mas adiante...
Conhecida pelas múltiplas viagens ao volante dos meus bólides, ninguém imagina: que a capital mais próxima se revela sempre um encalhe - para quem está habituada a não saber para onde vai mas para onde quer ir. 
Sim! Já atravessei muitas vezes a ponte... mas as tropelias sucedem-se sucessivamente. Não tenho má ideia dos condutores lisboetas: se no inicio explodem inexplicavelmente, rapidamente ficam cativos dos sorrisos, beijocas e adeus que, carinhosamente, envio ao primeiro sinal de água entornada.
Sem ajuda dos Canecos e querendo evitar a todo o custo parques de estacionamento ( eu lá saberei porquê), afirmei decidida:
- Carrinha, vamos a Lisboa e atravessamos a ponte- ela estremeceu e eu fiquei feliz.
Embora não tivesse publicado, as minhas intenções, no facebook: todos pareciam saber que a alentejana chegara. Uns paravam, outros esperavam e eu fiz tudo direitinho. Virei corretamente entre vias e vielas até me encontrar a 100 metros do destino. Uma manobra impensada, uma viragem contrária levou-me a conhecer mais uma zona da famosa capital. E agora? Não sei. Decidi apresentar-me , pessoalmente, aos habitantes de tão distinto local. Aproveitei uns semáforos, parei entre muitos, abri o vidro e obriguei (entre aspas) os que me rodeavam a copiar as minhas ações.
- Por favor! Praça de Espanha?
- Ui! Vem de lá!
- Eu sei! Mas gostei tanto que quero retornar- sorri.
- Pois! Mas agora já não consegue...
Mau! Recostei-me (com a tradicional calma) no assento, enquanto enviava gestos de carinho aos que passavam pela esquerda, pela direita e com vontade de passar por cima.
- Que fazemos?- Inquiri com alguma marotice.
- Minha senhora! Quer que eu atravesse o carro, pare o trânsito e você vira para trás?
- Quero- respondi ignorando o pânico do meu simpático meio de transporte.
E assim foi- ahahahhahahahahaahahah- Lisboa parou para me ver passar.
Adoro os lisboetas! Amo esta gente calma, simpática e desenrascada. Na próxima vez, publico no facebook:
" Amanhã, a alentejana atravessa a ponte, 10 horas."
É certo que todos irão gostar de me rever e muitos outros me escoltarão. Obrigada, gente boa.
Publiquei e as benesses não tardaram em chegar: mails com roteiros personalizados (adaptados à alentejana), telefonemas... caminhou mais longe, um simpático habitante local que decidiu acompanhar as minhas travessias sempre que remava até à capital. Provavelmente um colecionador de estampas e cromos ou alguém que, também, encerrava em si a esperança de sentir o sol brilhar. E tantos foram os “para lá” e “para cá” que as pontes se tornaram minhas. Sei-as de cor e salteado - salteado porque aquele piso de ferros quadriculado são o terror da minha doce carrinha.

E foi nestas andanças que o conheci: aquele que me abanaria as estruturas e me faria sonhar com um futuro ali tão perto.
O sol, envergonhado ou sem saber gerir o que adivinhara, chamou a lua que, habituada a arrepios incessantes e ao roçar dos amantes, semeou o caus em quem precisava de um simples raio de sol. E numa velocidade louca, entre aceleras, espera por mim e vira aqui, o telefone transpira:
- Estás no IC19.
Apaixonei-me mesmo ali! Por um mágico local onde todos pareciam aprender a voar, por piscas intermitentes que refletiam as entranhas de quem ainda não sabia amar. Vislumbrei curvas sedutoras, ternura sem fim e fiquei presa por um simples olhar. Qual ponte nem meio ponte! Amei-te ali ao primeiro roçar!
Tal foi a sedução (nunca ninguém me tinha brilhado assim) que decidi percorrer-te antes do tempo ser tempo. Procurei-te em vão. Oh! IC, por onde andas tu? Nem vislumbre do amor que me afaga e seduz. Alcabideche, Paço De Arcos, Linda-a-Velha, portagens e mais portagens... não te vejo, não te encontro, perco-me por ti. Apesar de trocar o trânsito, o sentido e as vias aos que circulam por aí, descobri que nem tudo é Lisboa e o IC nunca vem aqui. Socorro! Homem dos cromos! Preciso de ti! E na sua infinita ternura, sorrindo e de mão dada, leva a princesa a saber a sua estrada. E conto tantas as vezes em que o “Já sei” era tão longe de ti. E claro... o homem das estampas e dos cromos. Sempre o Homem das Estampas e dos Cromos. Obrigada! Já resolvi: o mapa estampado na frente da minha incrível companheira de quatro sapatos, sempre a meu lado pela estrada, levar-me-á até ti:

Homem das Estampas e dos Cromos

Não desistas de mim
Sou alentejana, procuro o IC19, anseio que o meu futuro passe por aí.

Por muito fedelha que seja: nunca imaginaria que o para lá da linha do horizonte, visto da sombra da velha oliveira do meu quintal, era o IC19!